Reflexões sobre Cannabis Medicinal
Ontem tive o prazer de participar de um workshop promovido por uma associação de Cannabis Medicinal aqui em Pernambuco e quero compartilhar com vocês algumas reflexões. Fiquei extremamente grata pelo convite, pois sempre tive curiosidade sobre o processo de produção desse tratamento que tanto tem sido debatido.
Antes de visitarmos o laboratório e a produção, participamos de uma palestra com uma colega médica. O foco foi defender a cannabis como uma solução para diversos problemas de saúde, ressaltando que a resistência ao seu uso estaria ligada a preconceitos ou à falta de coragem de muitos profissionais em prescrever. Também houve críticas à indústria farmacêutica mas sem o entendimento que a cannabis também se enquadra na prática de “medicações alopáticas”. Até aí já estava preocupada com a apresentação simplista e reducionista sobre o tema, logo depois percebi que a palestrante se apresentava como psiquiatra sem ter residência ou titulação em psiquiatria, além da experiência na área de cannabis ser apenas autodeclarada. Isso me deixou um pouco preocupada. Em nossa profissão, precisamos ter muito cuidado ao falar de alternativas terapêuticas, especialmente em um contexto onde muitos estão buscando respostas rápidas para questões complexas. Saúde é algo que envolve muitos fatores – sociais, emocionais e ambientais – e simplificar essas questões pode levar a falsas expectativas.
Esse tipo de discurso me lembrou muito do que já vi em áreas como a nutrologia, onde tratamentos como soroterapia e hormonioterapia são oferecidos como soluções quase “milagrosas”. Assim como esses tratamentos podem prejudicar o trabalho dos nutrólogos sérios, vejo o risco de a cannabis medicinal ser mal compreendida se não for apresentada com o rigor e a seriedade que merece. Quantas vezes já vi colegas médicos torcendo o nariz para a cannabis não apenas pelo “preconceito com a maconha”, mas porque o discurso que acompanha muitas vezes é superficial. É preciso ir além!
Como médica, acredito profundamente que a liberdade de escolha do paciente é fundamental. Minha responsabilidade é oferecer a você informações claras e recursos adequados, respeitando sempre os limites de cada abordagem terapêutica. O paciente deve estar no centro das decisões sobre sua saúde, mas essas decisões precisam ser tomadas com consciência crítica, sem transformar tratamentos em promessas infundadas.
Por outro lado, foi extremamente positivo ver o cuidado e a seriedade envolvidos na produção da cannabis medicinal. Isso reforça o compromisso com a padronização e a qualidade desse tratamento. Ver de perto todo o processo me deu ainda mais segurança de que podemos, sim, enxergar a cannabis como uma alternativa válida, desde que abordada de maneira ética e com base em evidências.
Vamos seguir juntos nessa jornada, sempre com responsabilidade e uma visão crítica. Cuidar da saúde é um processo contínuo, e as escolhas que fazemos precisam ser bem informadas.
Realmente funciona? Existe estudos com bom nível de evidência sobre o uso?
Existem estudos com bons níveis de evidência sobre o uso da cannabis medicinal, especialmente para algumas condições específicas. A cannabis medicinal tem sido amplamente pesquisada e seus potenciais benefícios e riscos são alvo de debates no meio científico. As áreas com maior evidência incluem:
Dor crônica: Estudos mostram que o uso de produtos à base de cannabis, especialmente o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC), pode ser eficaz para reduzir a dor crônica em algumas pessoas, como aquelas com neuropatia. Há revisões sistemáticas e meta-análises que indicam evidência moderada de eficácia, mas também destacam os efeitos adversos associados.
Epilepsia refratária: O uso de CBD em pacientes com epilepsias de difícil controle, como a síndrome de Dravet e a síndrome de Lennox-Gastaut, tem evidências robustas de eficácia. O Epidiolex, um medicamento à base de CBD, foi aprovado por órgãos regulatórios como a FDA (EUA) e ANVISA (Brasil) para esse uso.
Náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia: O THC tem sido utilizado como um tratamento adicional para controlar esses sintomas em pacientes com câncer. Revisões indicam que os canabinoides podem ser eficazes onde os medicamentos convencionais falham.
Espasticidade em Esclerose Múltipla: Produtos com THC têm demonstrado eficácia no manejo da espasticidade relacionada à esclerose múltipla, com boa evidência de controle dos sintomas.
No entanto, para muitas outras condições (ansiedade, depressão, insônia, doenças inflamatórias), os estudos ainda são inconclusivos ou apresentam limitações. A falta de padronização nas formulações, dosagens e estudos controlados dificulta conclusões definitivas em várias dessas áreas.
Os estudos sugerem que, embora a cannabis medicinal tenha potencial terapêutico, a escolha do paciente precisa ser feita de forma informada, considerando tanto os benefícios quanto os riscos, que incluem dependência e efeitos cognitivos adversos, principalmente com o uso prolongado de THC.
Principais divergências em torno da cannabis medicinal
Como sempre faço, procuro apresentar os principais pontos de divergência de forma clara, para que o paciente possa tomar uma decisão mais consciente e, assim, ganhar autonomia nas discussões sobre o próprio tratamento.
- Favoráveis: Muitos estudos indicam que a cannabis pode ajudar no tratamento de condições como dor crônica, epilepsia e sintomas de quimioterapia. O uso de compostos como CBD e THC tem mostrado resultados positivos, trazendo alívio para pacientes que não respondem bem a tratamentos convencionais.
- Contrários: No entanto, há especialistas que alertam que as evidências ainda são limitadas e que muitos estudos são de baixa qualidade. Precisamos de mais pesquisas robustas para garantir que a cannabis seja realmente eficaz e segura em longo prazo.
- Favoráveis: Quando usada corretamente, com o acompanhamento de um médico, a cannabis pode ter efeitos colaterais menores do que muitos medicamentos convencionais. Em alguns casos, pacientes relatam uma melhora significativa com poucos efeitos adversos.
- Contrários: Entretanto, críticos apontam que a cannabis pode causar dependência, prejuízos cognitivos e, em casos mais graves, desencadear transtornos mentais como psicose, especialmente em pessoas predispostas. A segurança a longo prazo ainda é motivo de preocupação para muitos profissionais de saúde.
- Favoráveis: A regulamentação da cannabis medicinal é vista como um passo positivo, permitindo controle de qualidade e segurança para os pacientes. Isso facilita o acesso e pode diminuir o mercado ilegal, além de garantir que os pacientes tenham acesso a produtos de origem confiável.
- Contrários: Por outro lado, algumas pessoas temem que a legalização possa abrir espaço para o uso recreativo descontrolado e dificultar a regulamentação. Além disso, o preconceito em torno do uso medicinal ainda é forte, e há receio de que isso possa atrapalhar a aceitação de pacientes e médicos.
- Favoráveis: Para os defensores, negar o uso da cannabis medicinal é negar uma opção de tratamento potencialmente eficaz para quem sofre com doenças crônicas e debilitantes. O uso da planta, com supervisão médica, pode ser uma questão de justiça social, proporcionando alívio acessível e natural.
- Contrários: Porém, há grupos que ainda associam o uso da cannabis, mesmo medicinal, a questões morais e de comportamento social. Para essas pessoas, o uso de uma substância historicamente ligada ao recreativo e ao uso ilícito é visto com desconfiança, o que pode criar barreiras para sua aceitação.
- Favoráveis: Há um movimento crescente para desestigmatizar o uso da cannabis medicinal, destacando seu valor como tratamento legítimo e necessário para várias condições. Essa mudança de perspectiva é importante para que mais pacientes se sintam à vontade em discutir o tema com seus médicos.
- Contrários: No entanto, ainda existe um estigma significativo em torno da cannabis, tanto dentro da sociedade quanto na própria classe médica. Muitas pessoas associam o uso medicinal ao recreativo, o que dificulta a aceitação e a implementação de tratamentos à base de cannabis.
Saiba mais
É essencial buscar fontes baseadas em evidências científicas, bem como plataformas e entidades reconhecidas por seu compromisso com a saúde pública. Aqui estão algumas das principais fontes:
1. Organizações Internacionais de Saúde
Organização Mundial da Saúde (OMS): WHO – Medicinal Cannabis
National Institute on Drug Abuse (NIDA): NIDA – Marijuana Research
National Institutes of Health (NIH): NIH – Cannabis Research
2. Publicações Científicas e Plataformas de Pesquisa
PubMed: PubMed – Cannabis Studies
Cochrane Library: Cochrane – Medicinal Cannabis
JAMA (Journal of the American Medical Association): JAMA – Cannabis
3. Entidades Reguladoras e de Saúde Pública
ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Brasil): ANVISA – Cannabis Medicinal
FDA (Food and Drug Administration – EUA): FDA – Cannabis Regulation
Health Canada: Health Canada – Cannabis for Medical Purposes
4. Associações de Pacientes e Organizações Médicas
Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama+me): Ama+me – Cannabis Medicinal
Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC): SBEC – Estudos sobre Cannabis Medicinal
5. Livros de Referência
“Cannabis Pharmacy” de Michael Backes: Cannabis Pharmacy – Amazon
“The Health Effects of Cannabis and Cannabinoids” – National Academies of Sciences: National Academies Press
6. Ensaios Clínicos
ClinicalTrials.gov: Clinical Trials – Cannabis Studies