Quando a ecologia de saberes é usada para vender o mesmo remédio

Tropecei num texto que me prendeu desde a primeira linha. Era sobre decolonização na medicina — tema que muito me interessa. Não era só um artigo; parecia quase um manifesto poético de tão bela a escrita.

Falava sobre curar não apenas o corpo, mas também os modos de conhecer, de cuidar, de existir. Denunciava como a medicina foi construída dentro de uma lógica colonial, onde apenas alguns têm o poder de definir o que é válido, o que é cura, o que é ciência.

Me encantei especialmente ao ver Boaventura de Sousa Santos citado, com sua proposta de ecologia de saberes. A ideia de um mundo em que diferentes formas de conhecimento possam coexistir com dignidade, sem hierarquias, sempre me pareceu profundamente transformadora.

Fiquei animada. Quis saber quem estava por trás daquela escrita. Fui buscar. E foi aí que algo me inquietou.

O grupo se apresentava como uma proposta de medicina alternativa, com uma linguagem sensível, espiritualizada, falando de equilíbrio e energia vital. Mas no centro da prática havia… um comprimido. Um único medicamento, que, segundo diziam, carregava “informações eletromagnéticas” capazes de reorganizar corpo, mente e espírito. Tudo fabricado e vendido pelos próprios médicos do grupo.

Era como se, sob um discurso decolonial, ainda estivesse ali a mesma lógica centralizadora de saber e poder. Só que agora com uma estética aprimorada e uma retórica envolvente.

E me perguntei: o que será que o próprio Boaventura pensaria ao ver suas ideias servindo de vitrine para práticas que seguem operando com a mesma estrutura que ele tanto critica?

Fico desconfortável com esse uso instrumental de palavras como “tradicional”, “ancestral” ou “integrativa” quando servem apenas como fachada.

Será que decolonizar é pintar a parede com tinta natural mas manter os mesmos alicerces?
Ou seria mais reconstruir, tijolo por tijolo, escutando com humildade quem sempre soube erguer abrigos com as próprias mãos?